Miguel Blog

Morreram todos. Só tem eu

Fiquei surpreso quando minha avó começou a falar sobre a morte hoje. Ela é a última dos irmãos e irmãs, os pais também se foram. Sinto que ela sente o peso do tempo, a dor de ficar e o medo de partir. “Morreram todos. Só tem eu. Éramos sete irmãos, só tem eu” ela disse. Ela viveu uma época estranha, as crianças morriam como moscas e os pais ficavam para contar a história. Ela comentou sobre o caso do Geraldo que morreu aos 13 anos com leucemia. Disse que um grande arrependimento da mãe dela foi proibir o menino de comer comida temperada por ordens médicas, ele morreu e ela só pensava que ao menos podia ter comido bem antes. Avózinha também comentou sobre Dalvina, a primeira filha de sua mãe, que morreu com pouco mais de um ano. Embora ela não tenha entrado em muitos detalhes, imagino que também tenha sido por doenças. A história que ela realmente queria contar era sobre sua irmã mais velha, Maria. Em 1937, quando Maria tinha 11 anos e minha avó apenas 6, ela ficou doente - embora minha avó não tenha explicado qual a doença. Imagino que, naquela época, ela não soubesse muito sobre. O curioso da história é que o que matou Maria não foi a doença em si, mas a cura. Meu bisavô fez o que podia fazer na época, foi à farmácia em busca de remédios. Conseguiu com um farmacêutico um frasco de pílulas. Qual era exatamente o remédio, eu não sei e pouco importa. O que importa é que, ao chegar em casa, meu bisavô deu o frasco inteiro para a criança tomar, 12 pílulas de acordo com minha avó. Maria fez o ordenado e tomou todos os remédios. Naquele dia, meu bisavô foi trabalhar na roça e minha bisavó estava fazendo angu, enquanto Maria passava o dia tossindo. Ninguém imaginava que os remédios poderiam ter um efeito instantâneo, então não ligaram para os sintomas de Maria. O dia passou, a noite chegou e foram todos dormir. Na manhã seguinte, no mesmo horário em que Maria havia tomado os remédios, minha bisavó encontrou Maria morta. Minha avó se lembra até hoje dos gritos de desespero da mãe.

Vovó parece se importar muito com essa história, me contou duas vezes seguidas e eu podia ainda ver eu seus olhos a tristeza. É perceptível que ele culpa o pai pelo ocorrido, “Meu pai sabia ler muito bem” ele me disse enquanto falava sobre os remédios “Tomou as 12, eram 4”. Eu não consigo nem imaginar o que se passou na cabeça do pai dela, um misto de raiva, culpa e impotência talvez? Imaginar que uma pequena ação errada pode ter levado à morte de uma filha. Seus filhos um a um vão padecendo enquanto você não consegue fazer nada. Não sei se meu bisavô chorou mas com certeza sofreu.

Penso o que mais poderia ser feito, o médico mais próximo ficava a quantos quilômetros de distância? Muitas vezes a mais de uma cidade, e mesmo o médico pode dar o problema como caso perdido. Geraldo foi três vezes até o Manhuaçu até o médico confessar que não tinha jeito e ele morrer. Será que Maria estaria bem se a tivessem levado para um médico? E o farmacêutico não avisou que não era pra tomar tudo de uma vez?

#Vovó #Avó #Relato #Morte